Jornal Extra – A equipe econômica do governo federal apresentou na última quinta-feira ao Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32/20, da reforma administrativa. Chamada pelo governo de PEC da Nova Administração Pública, a proposta tem como principal ponto — e também o mais polêmico — o fim da estabilidade para os novos servidores, com exceção daqueles em cargos típicos de estado.
Para o ministro da Economia Paulo Guedes, essa mudança faria com que o funcionalismo se tornasse mais meritocrático, acabando com “privilégios”, e valorizando os servidores que produzem mais e melhor. No entanto, para especialistas ouvidos pelo EXTRA, a medida pode não ser tão eficiente quando se acredita.
— A PEC é muito ambígua com relação à estabilidade. Diz que vai manter para carreiras típicas de estado, mas não diz quem são e o que representam na força de trabalho. Além disso, caso a mudança seja aprovada no Congresso, existe um risco de haver uma descontinuidade grave nas políticas públicas, o que já se faz mesmo com estabilidade — avalia Alketa Peci, professora da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da FGV.
Para Marcelo Segal, professor da pós-graduação do Ibmec RJ e juiz da 26ª Vara Federal do Rio, é importante que durante essa discussão se tenha em mente os motivos pelos quais a estabilidade no serviço público foi criada.
— A estabilidade existe porque havia, durante a elaboração da Constituição de 1988, uma preocupação de que o servidor fosse perseguido pelo administrador. Por isso, o objetivo era dar ao funcionário público autonomia, de saber que ele continuará lá independentemente do governante.
Coordenador da Frente Parlamentar Mista em Defesa do Serviço Público, o deputado Professor Israel Batista (PV-DF) afirma que hoje o mal serviço público está concentrado nas regiões onde não há um vínculo concreto do servidor com o estado.
— O serviço público é mal prestado justamente na ponta, onde os prefeitos indicam a maioria dos cargos. Indicam o chefe do posto de saúde, os professores. A estabilidade precisa ser mantida porque é uma conquista democrática, é uma garantia de que o serviço público não vai se submeter à discricionaridade do poder político, mas sim à lei. Se você tira a estabilidade, deixa o servidor vulnerável às pressões político-partidárias do país. Nós vivemos em um país patrimonialista, a regra no nosso país não é o serviço público profissionalizado, com os servidores concursados e estáveis. A regra são as indicações políticas.
Mas, afinal, o que são as carreiras típicas de estado?
A PEC estabelece que os critérios para definição de cargos típicos de Estado serão estabelecidos em lei complementar federal. Segundo Rudinei Marques, presidente do Fórum das Carreiras de Estado (Fonacate), são considerados hoje cargos típicos de estado aqueles que não possuem equivalência na iniciativa privada, como área militar, segurança pública, diplomacia, arrecadação tributária, auditoria governamental, entre outras. De acordo com ele, a necessidade de uma lei complementar decorre do fato de que o atual texto constitucional carece desde 1988 de regulamentação.
— Os critérios estão esparsos na constituição e nas leis, e estão ligados a atividades indelegáveis, que só o poder público pode realizar, sem correlação com a iniciativa privada e de elevado grau de complexidade.
O fim do Regime Jurídico Único e os ‘novos’ vínculos
A proposta do governo prevê o fim do chamado Regime Jurídico Único, que seria substituído por novos vínculos, com diferentes regras de estabilidade. O primeiro grupo seria formado pelas carreiras típicas de Estado, com estabilidade. O segundo, seria formado por servidores com contratos de duração indeterminada, que poderiam ser demitidos a qualquer momento, por necessidade de cortes de gastos, por exemplo. Nesses dois casos, o ingresso no funcionalismo ocorreria por concurso público.
A PEC também permite a contratação temporária a qualquer momento, sem necessidade de cumprir uma demanda excepcional. Esse seria o terceiro grupo composto por servidores com contrato temporário, sem estabilidade, e que ingressariam por meio de seleção simplificada. Essas regras valem também para o quarto grupo, de cargos de liderança e assessoramento, similar ao atual cargo comissionado ou de confiança.
Por fim, o quinto grupo é o vínculo de experiência, dos quais farão parte candidatos que ingressem por concurso público.
— Já existe um conjunto de normas que regulamenta absolutamente todas essas questões que estão contidas na proposta. Faltou uma varredura no atual arcabouço normativo para tentar racionalizar o que já se tem. Não precisava criar uma PEC para isso — critica a professora da FGV Alketa Peci.
Contratação temporária não funciona para todos
Alketa Peci lembra que de 1995 a 2003 houve uma explosão de contratações temporárias no país, e que essa discussão “já foi superada”.
— Houve um momento em que 90% dos servidores do Meio Ambiente não eram concursados. Imagina hoje o Ibama com cargos temporários, qual seria a autonomia que teriam para defender o meio ambiente? Zero. O Brasil já teve esse momento, e foi superado pela própria expansão do papel do estado, e porque houve questionamentos — aponta a especialista.
Reforma não reduz privilégios no serviço público
Ainda de acordo com a professora da FGV, Alketa Peci, a reforma não cumpre o propósito de reduzir privilégios, já que poupa justamente as carreiras “que mais abusam das distorções”, como o Judiciário, o Legislativo e os militares.
— Onde se tira férias com mais de 30 dias é no Judiciário, no Ministério Público. Caberá ao Congresso também estender um pouco essa discussão.
Segundo o deputado Professor Israel Batista, a Frente Parlamentar em Defesa do Serviço Público está se organizando:
— O governo está se articulando no Congresso para aprovar o fim da estabilidade, há uma frente parlamentar que tem defendido o fim da estabilidade mesmo para os servidores atuais. O governo tem conseguido formar maioria em algumas votações, tem feito aproximação com partidos do Centrão, que pode garantir alguma governabilidade. Mas a Frente Parlamentar em Defesa do Serviço Público está se organizando. Primeiro, para produzir dados que evitem a divulgação de dados distorcidos, que acabam formando uma opinião pública enviesada. E está buscando evitar que discussão tenha por base a vilanização do servidor público, que é uma característica desse governo. Estamos buscando nos articular com os parlamentares e outras frentes que tratam de temas correlatos para que a gente consiga formar um bloco capaz de resistir a essa alteração que para nós é um retrocesso do ponto de vista democrático.